29 de jun. de 2018

3:19 da manhã


2:23 da manhã. Bernardo acordou assustado. Sentou-se na cama e tentou lembrar-se do que sonhava, o que poderia ter sido tão desesperador? O suor escorria pelas costas e pescoço, embora estivesse frio. Buscou pelo copo de água no criado-mudo ao lado da cama e, ao tentar pegá-lo, derrubou toda a água no móvel. Rapidamente, arrancou a gaveta, para que nada se molhasse, mas uma poça já havia se formado em cima de uma fotografia virada para baixo. Não se lembrava que foto era aquela, por que ela estava ali?

2:31 da manhã. Pegou a fotografia, deixou a água escorrer para o chão e a virou. Uma mulher em seus 20 anos abraçava um Bernardo também mais novo. Naquele instante, seu sonho lhe veio à mente e ele voltou a suar. Ela chamava seu nome, suplicando para que fosse salvá-la. Bernardo conseguia ouvir o choro angustiado, a voz no meio dos soluços, a respiração ofegante. Ele podia sentir o desespero, a boca seca e o coração acelerado dela. Ela precisava de ajuda e ele conseguia sentir, mesmo depois de dois longos anos sem se falarem.

2:40 da manhã. Bernardo olhou o horário no celular e pensou que talvez não fosse tão tarde para ligar para ela. Procurou seu número na agenda como fazia todos os dias antes de levantar da cama, mas hesitou: ela tinha pedido para ele nunca mais a procurar. Além disso, e se ela tivesse mudado de número? Fazia tempo que não via suas atualizações, sua foto havia sumido dos seus contatos. Talvez ela simplesmente tivesse bloqueado seu número. E, se ela estivesse mesmo em perigo, talvez ligar não fosse a escolha mais sensata.

3:02 da manhã. As luzes do farol de carro de Bernardo iluminaram a rua da casa de Amanda, mas logo se desligaram quando ele estacionou a alguns metros do portão esverdeado pelo qual já havia entrado inúmeras vezes. O carro de Amanda estava guardado na garagem: ela estava em casa. As luzes estavam todas apagadas, não havia qualquer ruído pela redondeza, nem mesmo de cachorros latindo. Talvez tivesse realmente sido apenas um sonho. Mas tinha parecido tudo tão real. De repente, uma luz se acendeu e Bernardo viu Amanda passar pela janela sozinha, tranquila. Se estava acordada, não haveria problema em enviar uma mensagem para seu celular.

3:19 da manhã. “Oi, é o Bernardo! Desculpe a hora, mas sonhei que você estava me chamando, me pedindo para te ajudar. Só queria confirmar que você está bem.” Mensagem enviada e recebida: bloqueado não estava. Se Amanda não respondesse, ou não era mais o número dela ou ela não queria mesmo contato com ele. Olhou mais uma vez para e janela e, sabendo que ela estava a salvo, ligou o carro e voltou para casa.

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2:11 da manhã. Amanda não conseguia dormir, só conseguia pensar em quanto sentia falta de conversar com Bernardo. Sentia falta dele em sua vida, do seu abraço e do seu beijo. Fazia tanto tempo que não tinha notícias dele. Queria poder ouvir sua voz mais uma vez, mas tinha pedido a ele que desaparecesse de sua vida. Apagou seu número do celular, bloqueou Bernardo em todas as redes sociais e proibiu todos seus amigos de darem a ela o seu número. Agora não tinha mais como entrar em contato com ele.

2:14 da manhã. Então, fez a única coisa que podia fazer: chamou o nome de Bernardo, suplicando por ele. Repetia incessantemente seu nome. Quem sabe ele a ouvisse e, assim, ligasse para ela. Sabia que era maluquice sua, mas estava desesperada. Lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto, em um choro angustiado. Seu coração estava acelerado, a respiração ofegante misturada a soluços. Ela precisava dele, queria que ele sentisse isso, mesmo depois de dois anos sem se falarem.

2:31 da manhã. Pegou a fotografia que guardava dentro do seu livro de cabeceira e a apertou em seu peito, como em um abraço. Olhou pela milésima vez a foto em que uma Amanda mais nova abraçava um Bernardo em seus 20 e poucos anos. Chorou mais, chorou descontroladamente. Queria sentir seu cheiro mais uma vez.

2:40 da manhã. Já não aguentando mais aquela angústia, Amanda sentou-se na cama e começou a se lembrar do porquê tinham terminado. Lembrou-se de como se sentia sozinha mesmo estando juntos e de todas as vezes que ele havia ignorado seus sentimentos e a feito sentir-se desprezível. Logo o choro foi diminuindo e ela começou a se acalmar.

3:02 da manhã. Olhou as horas... estava tarde. Sua respiração tinha voltado ao normal e seu coração já batia na velocidade certa, mas nada daquele soluço passar. Levantou-se e foi até a cozinha tomar água e, quem sabe, algum remédio para conseguir finalmente dormir. Estava tudo silencioso, seu cachorro dormia na sala e sequer acordou quando ela acendeu a luz. Jogou o celular em cima da mesa, encheu um copo com água e ficou parada olhando para o nada.

3:19 da manhã. Amanda se assustou com o barulho do celular vibrando na mesa da cozinha. Agora sem soluço, mas ainda tremendo, pegou o celular e não podia acreditar naquilo. Leu a mensagem três vezes para ter certeza. Voltou a chorar. Quando apertou o botão para responder, sua mão trêmula apagou a mensagem e, junto com ela, o número de Bernardo. Amanda caminhou até a janela da frente, onde não se aguentou e caiu. Seu cachorro, assustado, começou a latir. Amanda, no chão, só conseguia fazer uma coisa: chamar por Bernardo.

15 de set. de 2017

Matheus e Karina

Quando Matheus se inclinou para beijá-la, Karina, com um gentil toque em seu ombro, o afastou.
— Não faça isso… — sua voz soou suave e tinha os olhos fechados.
— Desculpa, você tem razão. Poderia estragar nossa amizade. Não sei no que estava pensando. É que o seu cheiro...
Karina o interrompeu. Delicada.
— Não é isso. É que eu te amo.
Matheus recostou de volta na cadeira. Não piscava.
— Mas você disse que não sentia nada por mim, que éramos apenas amigos.
— Eu sei. E somos. Eu não sentia. Não quando estávamos juntos. Mas hoje... — não conseguiu mais continuar. Não sabia como explicar para ele.
Karina apenas havia notado há alguns dias que estava apaixonada pelo seu melhor amigo. Se conheceram, se beijaram, trocaram carinhos e terminaram. Se davam melhor assim, sem a pressão, sem o envolvimento. Tinha sido um acordo entre eles. Não sentiam nada um pelo outro além de amizade. Ela estava contente com isso. Até perceber que o amor vem com o tempo, com o contato, com as coisas pelas quais passam juntos.
— ... hoje eu entendi que o que sinto por você é mais do que isso.
— Eu não te entendo. Você mentiu para mim? Quando concordamos que não sentíamos nada de mais? Mentiu para mim aquele dia só para eu achar que estava tudo bem? — O tom de voz de Matheus começou a aumentar. Sentia-se enganado. Todo o tempo ele dizendo que não deviam se apegar, e ela apaixonada. Ela aceitou apenas para que ele não se sentisse um canalha.
— Não! Não é isso! Você acha que eu agiria assim sabendo que você não gostava de mim e que nunca sentiria algo? Seria ME enganar. Mas não. É que eu me apaixonei pelo jeito que você tem me tratado. Me apaixonei pela pessoa que você é.
— Eu sou exatamente como antes. — Dessa vez não se alterou. Sentiu que sua voz saiu em tom de dúvida.
Karina sorriu ao mesmo tempo que uma lágrima escorria de seu olho.
— Você sempre foi um amor, sempre me tratou com carinho e respeito. Sempre foi honesto. Sempre nos divertimos juntos. Você está sempre ao meu lado, me fazendo sorrir.
— Então... — estava trêmulo. Nervoso. Já havia passado por aquela situação várias vezes. Não gostava de magoar as pessoas. Ainda mais ela.
— Então que hoje você faz isso porque quer. Antes fazia para me conquistar. Fazia por obrigação.
Matheus balançou a cabeça, não queria aceitar a verdade.
— É, sim. Aquela obrigação que todo mundo tem por causa da pressão de quando se está com alguém, de ter que ser gentil com a pessoa para que ela se sinta bem. Não quer dizer que não é de coração. Mas é diferente.
Agora Matheus olhava para suas mãos apoiadas na mesa. Estava de lado para ela, não queria encará-la.
— Hoje você me trata bem porque você é assim. Sem obrigações. E ser legal por obrigação é fácil. Ser uma pessoa boa, simplesmente por ser, é o que te torna apaixonante. Não me apaixono por ações convenientes. Me apaixono por ações verdadeiras. E entendo que você me trata dessa maneira porque somos amigos e amigos são sempre sinceros uns com os outros.
Karina tocou a mão dele e quando Matheus levantou o rosto, viu que o dela estava coberto de lágrimas, ainda que estampasse um largo sorriso.
— É verdade, sou sempre sincero em como te trato. Sai do meu coração. Te ver bem me deixa feliz. Mas não posso te oferecer mais que isso e...
Com os dedos, Karina tocou os lábios de Matheus, pedindo que não continuasse.
— Eu não quero que você me ame de volta. Sua amizade para mim é o suficiente. Quando me apaixonei, sabia que não era recíproco. Mas não me peça para te beijar, não me peça para ser sua diversão.
Ele sorriu um sorriso tímido.
— Desculpa.
— Não tem problema. Eu que deveria parar com essa mania de me apaixonar pelos meus melhores amigos.
— Já aconteceu antes? — Estava aliviado. — Quantos melhores amigos você já teve? — Sorria.
Karina sorriu de volta para ele, um olhar carinhoso acompanhando.
— Só você.

Riram. Matheus contemplou a deliciosa risada de Karina. Deteve-se em seu perfume. Observou-a jogando o cabelo para trás e sentia-se completo sabendo que a fazia feliz. Enquanto Karina enxugava as lágrimas, Matheus abriu um sorriso com o coração acelerado. Estava apaixonado.

14 de set. de 2016

Setembro Amarelo - Uma carta de suicídio

Olá,

Começo essa carta dizendo que você não tem culpa do que eu fiz, mas também não tente se ausentar dela. Por vezes dei sinais, queria ser salva, mas quando me senti invisível, percebi que de nada adiantava mandar mensagens para pessoas que só estavam enxergando ações de fases passageiras. Quantas vezes escutei que o que eu sentia não passava de uma crise de adolescente comum? Quantas vezes você não deve ter dito isso para outras pessoas, sem ao menos buscar saber o que elas sentiam? Hoje sou adulta e quando penso em todas as minhas angústias e minha vontade de sumir desse mundo, me pergunto se essa fase adolescente já não está durando demais. Quando é que minhas crises adolescentes serão encaradas como problemas reais que enfrento na minha mente? Você já pensou que na verdade a “adolescência” talvez nunca passe para algumas pessoas e as crises de identidade, familiar, afetiva, emocional ou qualquer uma que faça com que você deseje que sua vida acabe nesse minuto, estão apenas se estendendo ao decorrer dos anos porque as crises nunca tiveram nada a ver com ser adolescente, mas com o mundo de coisas que passam em suas mentes e que continuam atormentando-as no presente, do mesmo modo que perturbavam no passado?

É aqui que está sua parcela de culpa. Por sempre ter relevado todas as vezes que desesperadamente procurei sua ajuda em palavras que talvez não fossem tão óbvias. Ou mesmo nas vezes em que descaradamente eu te disse que queria fugir ou dormir para nunca mais acordar e você achou que não passava de preguiça minha ou certa vagabundagem. A culpa não é sua por eu não querer continuar a minha vida, mas é sua que trata o que eu sinto como uma fase, como algo sem importância, como tpm, como falta de sexo ou como mimo. A vontade de pular do último andar do prédio vem de mim, de problemas que eu enfrento, independentemente de quais sejam eles, mas o empurrão foi você quem deu quando usou a expressão “mimimi” para se referir às vezes que eu tentei te contar como me faltava ânimo para seguir minha vida. Por vezes busquei aquele abraço ou tentei te encontrar depois do trabalho só para tomar um suco e saber que eu tinha você ao meu lado, mas você tinha coisas mais importantes para fazer, mesmo sabendo que eu nunca tenho atitudes como essa. 

Não é fácil pedir ajuda, não quero gritar aos quatro ventos que tenho vontade de morrer. Eu não falei com todas as letras, nem chorei ou implorei para que você me ajudasse. Claro que a culpa do que eu sinto não é sua. Mas você é culpado por me dizer que quem quer se matar, se mata logo e não fica esperando ajuda. Você já pensou que uma pessoa que tem vontade de morrer, também quer ter vontade de viver? Sabia que todas as vezes que eu tentei me matar, eu esperava que alguém abrisse a porta do meu quarto e me impedisse de fazer isso, simplesmente porque eu queria que alguém me mostrasse que há uma razão para viver. Mas você sempre pensou que eu só estava querendo chamar a atenção.

Mas não é bem assim. Eu me sinto vazia. Sinto que não tenho emoção ou sentimento por ninguém. É uma ausência de tudo e eu não sinto falta de nada. A palavra para mim é indiferença. Sinto que preciso me mover, mas não é que me falta vontade, é só que me falta ânimo, ambição, algo que me faça seguir, e não que me carregue. Às vezes tenho vontade de fechar os olhos e acordar quando tudo já estiver ajeitado, mas sei que para que isso aconteça eu preciso estar acordada, em busca do que eu quero. Mas me falta essa ânsia, essa ganância por algo. Eu não me sinto feliz onde estou, não me sinto completa com o que eu escolhi. Falta-me algo e eu não sei o que é. Essa indiferença um dia me mata. Essa indiferença acabou de me matar.

Ps: Se mais alguém tentar conversar com você sobre como se sente, sobre querer cometer suicídio, dê antenção. Deixe que a pessoa fale. Incentive-o a buscar ajuda de um profissional. Não deixa que aconteça com eles o que acabou de acontecer comigo.

Se você quiser mais informações sobre essa campanha, acesse o site: http://www.setembroamarelo.org.br/

20 de jun. de 2016

Carta ao querido

Querido,

Desculpe-me, mas para sanar minhas inquietações, eu gostaria de te perguntar o que eu fiz de errado para merecer o seu silêncio. Eu entendo que não sou perfeita, que tenho milhares de defeitos, mas qual deles é tão grave para que eu não seja digna das suas respostas, nem ao mesmo de uma explicação do porquê, de uma hora para a outra, você deixou de falar comigo.

Não é por nada, não é cobrança, não estou louca por você, só gostaria de entender, para não repetir os mesmos erros, embora eu pense que na verdade o erro não está em mim, e sim em você em não perceber a pessoa que eu sou. Mas ainda assim gostaria de entender seus motivos e tomar minhas próprias conclusões se a falha foi sua ou mesmo minha.

Então, me explique por que você me visualiza mas não me responde. Qual foi o meu grande erro naquela última vez que nos vimos e parecia estar tudo bem? Eu não sou a pessoa mais fácil desse mundo para se lidar, mas também não sou tão difícil assim. Sei que não o magoei, não te disse nada que tenha te ofendido e tampouco agi como alguém fora de si. Por isso, meu querido, gostaria de entender suas razões para passar a me ignorar sem mais nem menos.

É só por curiosidade mesmo. Porque não aguento ficar sem uma resposta. Para nada nessa vida. Me diga, então, por que eu não sou boa o bastante para esse seu ego? Ninguém é obrigado a estar com uma pessoa que não quer, mas isso não quer dizer que eu não mereça um “não vai dar mais”.

Que falta de educação deixar os outros falando sozinhos, que falta de respeito não dar satisfação para uma pessoa com quem você compartilhou momentos e histórias. Mas algum motivo você teve, pois ninguém desencanta assim, inesperadamente. Apaixona-se subitamente. Entretanto, para se desligar totalmente de alguém, tem que ter havido uma razão. E é isso que eu quero que você me responda. Só que entenda, não é porque busco respostas, que te quero de volta.

Ah, querido. Como eu gostaria que tivesse sido diferente. Infelizmente, não sou detentora do destino. Apenas posso mudar minhas atitudes para que atitudes como a sua não voltem a acontecer comigo. E, para isso, aguardo sua resposta.

Sua nem tão querida.

3 de mai. de 2016

Inverno

Cada noite que minha pele toca os lençóis gelados da cama, meu corpo estremece. Quem dera fosse de frio e não de saudade. Fico esperando suas coxas tocarem a minha e seu braço me buscar para me trazer próxima a você. 

É que esse frio me faz lembrar de você, me traz memórias recentes do nosso último inverno. Sua boca tocando a minha nuca e nossos cabelos se emaranhando no travesseiro. Que saudade daquele tempo em que frio era a última coisa que eu sentia no quarto de janelas congeladas.

Todas as vezes que o vento carregado de lembranças entra por debaixo da porta e me toca, desejo que seja o sopro da sua respiração em meus ouvidos. Consigo escutar ele me pedindo para ficar e então ele se congela. Tudo se congela nesse frio. Menos o nosso tempo. 

O vento gélido estagna no meu quarto, vazio, e mais uma vez estremeço. De saudade, de frio, de arrependimento.

E não adianta quantos cobertores eu decida colocar em cima de mim. Nada será como o calor do seu corpo ou como o aconchego dos seus braços. Assim como travesseiro nenhum será mais macio e confortável do que seu peito. Nenhum irá me embalar com as músicas das batidas do seu coração.

Naquele inverno, não houve frio. Pelo menos não para nós. Hoje, não sei mais se o frio que sinto é do novo inverno que se aproxima ou se vem da frieza com a qual você me trata e do gelo das suas palavras.

A única certeza que tenho é de que nosso último inverno ficou distante. Tão distante quanto nós. 

19 de abr. de 2016

19-04-2016

Oitenta anos! Ainda alimentava a ilusão de ser um jornalista. Nunca o fora, mas sempre acreditou ser. Passou toda a sua vida reclamando, sem aproveitá-la, e agora lamentava não ter vivido como queria.
Olhava pela janela e via o sol nascer, podia ter visto mais vezes, mas estava ocupado de mais lendo jornais e livros – um dia ainda isso lhe serviria para alguma coisa.
Não tinha mais mulher, seus filhos o abandonaram depois da morte da mãe. Não tinha ninguém, não tinha amigos, apenas aquela velha máquina de escrever a qual ele tratava como se fosse sua filha.
Foram milhares de papéis preenchidos com seus rabiscos. Acreditava que um dia alguém ainda ia notar e, então, transformá-lo no tão sonhado jornalista que sonhava ser, mas que nunca tinha buscado acontecer.
Outro dia, dormiu sobre a máquina e sonhou que tinha vinte e dois anos. Era sua formatura. Finalmente formava-se na carreira que havia escolhido. Estava sendo requisitado pelos melhores jornais do país. Suas mãos escreviam artigos esplendorosos e ao seu lado estava a mulher que amava. Fazia tudo que não tinha feito durante sua vida inteira. Estava sendo feliz.
Acordou e achou que ainda estava sonhando, escreveu um texto sobre como viver uma vida com felicidade. Pensou ser um bom texto, mas como escrever sobre algo que você desconhece? Levantou-se e foi tomar uma xícara de café. Foi então que notou que poderia tentar recomeçar, faria tudo diferente, afinal, ainda não estava morto. Animou-se, começou a arrumar suas coisas, iria atrás de jornais, atrás de seus filhos. Começaria uma nova vida aos oitenta anos. Mas, bobagem isso tudo, não poderia, era velho demais para tudo isso, logo morreria. Era um velho fracassado. Quem iria contratar um senhor de barbas brancas e com ralos cabelos na enrugada cabeça?
Voltou a dormir, já de pijama e em sua própria cama. Acordou assustado de um sonho turbulento. O suor escorria pelas costas. Havia sonhado com sua morte, viu-se dentro de um caixão; as poucas pessoas que apareceram para prestar as últimas homenagens, riam e atiravam flores murchas. Percebeu que o telefone tocando o tinha despertado.
Há tempos o telefone não tocava naquela casa. O barulho ecoou por toda a imensidão de paredes da casa. Devia ser engano, deixou tocar. O som do toque parecia cada vez mais alto e desesperado. Quem quer que fosse, era persistente. Provavelmente era uma daquelas mulheres chatas que ligam para importunar as pessoas querendo te oferecer um produto. Atendeu. Uma voz rouca do outro lado da linha perguntou por Valdir. Era ele. O que alguém queria com ele? Provavelmente pedir alguma coisa.
Era seu irmão. Fazia exatamente um ano que não se falavam. Queria lembrar Valdir de dar os parabéns a ele. Ele sempre esquecia, por isso seu irmão ligava. Deu, e conversaram sobre a vida presente e passada. Derramou lágrimas de seus olhos ao lembrar de sua infância e de tudo que já tinha passado. Lembrou-se da sua amada esposa novamente. Como era difícil viver sem ela. Daria tudo para ela estar ali com ele ainda. Tinha sido seu grande, eterno e único amor.
Despediu-se do irmão e, pela primeira vez, disse que o amava. Desligou o telefone e apanhou um retrato que guardava de sua mulher. Abraçou sob choro e soluços. Pensou nos filhos e pensou nos netos, nas poucas vezes que os tinha visto. Como estariam? Sentiu vontade de falar com eles, mas preferiu deixar para outro dia, como fez com tudo em sua vida. Uma vez a mais ou a menos não faria diferença.
Deitou-se na cama, ainda abraçando o retrato. Sentiu seu corpo pesar. Deu um beijo na esposa e fechou os olhos para nunca mais abrir.

3 de mar. de 2016

Hoje eu entendo

Hoje eu entendo. Não adianta eu querer me enganar e fingir que existe algo entre a gente. Foi tudo imaginação minha, tudo fantasia que eu queria que fosse realidade e por isso me deixei enganar por tanto tempo. Suas palavras nunca foram verdadeiras e o meu amor por você nunca foi recíproco. Passei esse tempo todo ouvindo réplicas de você e nunca frases proferidas pela sua boca.

Hoje eu entendo que o que você sente por mim não passa de uma grande amizade. Eu não sou a pessoa que você quer carregar ao seu lado, para as boas e más horas. Eu não sou e nem serei a pessoa por quem seu coração acelera e que te rouba os pensamentos.

Hoje eu entendo que você tem medo de me magoar, que todas as suas brincadeiras se desvaneceram pelo seu temor de que eu as entendessem de maneira equivocada. Você tem medo de que eu acredite em cada uma das suas mensagens. E eu entendo seu receio, pois até este momento eu julguei-as sinceras.

Hoje eu entendo que todos os sentimentos que dei a você tiveram sempre retornos de piedade. Todas as expressões de carinho que você um dia dirigiu a mim foram, de fato, favores que você pensou estar me fazendo. E você tentou me dizer tudo isso, eu só não entendi.


Hoje eu entendo que é preciso dois para viver essa história. E eu tenho me entregado inteira nisso que eu idealizei para nós, enquanto você não se entregou nem pela metade nisso que você fingiu ser amor.